Poemas recitados na 1ª Feira Temática de São Pedro de Penaferrim
No dia 17 de Janeiro de 2010, pelas 15h30m, o poeta Filipe de Fiúza declamou alguns poemas de poetas naturais, residentes ou visitantes de Sintra na 1ª Feira Temática de São Pedro de Penaferrim.____
Ao volante
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
Álvaro de Campos
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Primeira Lua de Inverno
I
Repousa em redor a pequena vila.
Às luzes que cruzam a rua
Juntam-se as lanternas de um fiacre.
Poluídos para alguns os frutos do dia,
Deixam o mercado agora ermo,
Sem uvas nem girassóis.
Ouve-se música através dos muros,
No jardim alguém tenta calar o apelo
De um amor recusado, ainda em chaga.
Mas na cascata a água precipita-se,
Fresca, num jorro rápido.
II
Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passado provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sopro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.
M. S. Lourenço
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Parque da Pena ramo senhoril
No regaço granítico da serra
Em teu condão de lírica beleza
Ficaste neste mundo de tristeza
Como um sonho de amor primaveril
- verde estrofe de um canto panteísta
Paraíso que a alma nos conquista
E que por dom de Deus desceu à terrra!...
Oliva Guerra
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Ei-lo, o vasto oceano, ouvindo-o creio
O murmúrio escutar da eternidade!
Eis campinas que ao céu seu canto elevam
Aqui o espaço, além a imensidade.
Puro e azulado o céu seu manto estende
Cujas franjas o sol no oceano doura,
E à voz de Deus, nas vagas que incendeia,
Apaga o sol a chama abrazadora.
E o mar, leão que ruge e a juba prostra,
E o sol, altivo com a brilhante luz,
Murmúrios, hinos, cantos inefáveis,
Tudo fenece aos pés da humilde cruz.
Poema inscrito numa lápide de pedra que estava junto à Cruz Alta, Sintra
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Cruz Alta
Longe das ondas turvas da maldade
Sobre este cume, entre rochedos nus
És bem o extremo apoio, que Jesus
legou por sua morte à humanidade.
Vai bem à tua simples majestade
Este lugar que te foi dado ó Cruz
Pois neste cimo é mais intensa a luz
E é mais intensa e bela a tempestade.
Feriu-te um dia o raio, e certamente
Mais duma alma estranhou, irreverente
Que o céu visasse o que une o céu à terra...
Mas eu sei bem que tu é que atraíste
A cólera do espaço, e assim cobriste
Com dois pequenos braços toda a Serra"
Francisco Costa
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Tu és Mortal
Tu és mortal meu filho
isto que um dia a morte te virá buscar
e tu não mais serás que um grão de milho
para a morte debicar
Tu és mortal anjo
tu és mortal meu amor
isto que um dia a morte virá de banjo
insinuar-se-te senhor
É-se mortal meu Deus
tu és mortal meu Deus
isto que um dia a morte há-de descer
ao comprimento dos céus
António Gancho
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Poema das coisas simples
(Em Albarraque, na Casa Branca de José Gomes Ferreira. Num fim de tarde de
Primavera, os pássaros entoam a música azul da Natureza. O meu filho inventa melodias no xilofone que acordam em mim uma alegria incontível pelos dias futuros)
de como espanta a luz na casa branca
por ventura do amigo ou do poeta
de flores de maio no cavalo verde
sob a fala de meu filho imaginado.
de como ignoro a folha oculta do futuro
e escrevo a distensão em aeroplano de papel
e nela o monte ou corpo amor celebro.
de como louvo as coisas e os seres sem equação
que fora de mim e amigas se desvelam
na diferença de porvires sem metafísica
e na horta arando vou os simples e os complexos.
mas não me sinto agora, amigos,
como um estranho no universo se
a face herdeira no instante demiúrgico
do nascer de um novo dia – ao crepúsculo,
respira a cor, sente o por vir, procura o nome,
eu repouso para sentir.
se deixo a cidade num coche de ânsias
levam-me as nuvens ao feliz boreal;
ouço então a cascata a ocidente
reverbero em nadires fulgurantes de desejo
e deito-me a dormir tranquilamente
sonhando com o tempo de oiro e utopia
nas páginas de um livro que ainda não li.
Jorge Telles de Menezes
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Mente! Dez mil vezes mente!
Não tenhas escrúpulos das palavras falsas pois são as palavras falsas que eles gostam de ouvir. Estão ávidos de palavras falsas, e submissas, e lisonjeiras, e mesmo neutras.
As palavras têm um carácter beato, adornam-se de escapulário e tornam-se piedosas e devotas. São envolventes e deslizam entre a virtude e a compaixão.
As palavras submissas são suaves e simpáticas mas também mesquinhas. São marcadas pelo vício da humildade e da gratidão. Usadas com propriedade são óptimas para amaciar a pele dos nossos legítimos superiores.
As palavras lisonjeiras - Oh, as palavras lisonjeiras! - como são insinuantes e resultantes. São formosas, delicadas e descaradamente parasitárias. Eles adoram as palavras lisonjeiras, derretem-se por elas.
E as neutras? As palavras neutras têm a particularidade de serem inofensivas. São lisas e cinzentas pelo que jamais comprometem.
Mente! Dez mil vezez mente!
As pessoas veneram as mentiras que alimentam o seu ego único e insuperável.
Lança-te na mentira se queres obter na vida a recompensa das tuas ambições. Não percas um instante, não hesites, não tenhas dó de ti nem dos outros. Eles gostam da impiedade das mentiras piedosas.
Mente! Dez mil vezes mente!
Mente por necessidade, por hipocrisia, por prazer. Mente com alegria e volúpia para que possas sentir dos outros a atenção, o desejo e a preferência em estarem junto de ti.
Mente!
Sê bom rapaz e mente.
Se não souberes aprende. É urgente!
António Augusto Sales
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O Chalet da Condessa, numa manhã de Março
Pés vegetais descobriram caminhos
longitudinais.
Logo troncos arbóreos verticalizaram os sonhos
de navegação em verde
na busca de muitas outras índias mais.
Depois
os fetos
tais desenhos de mãos e dedos
a acariciar dolentes os penedos
linguajaram falas alegrias mágoas
num diálogo poliglota banhado de águas.
Então as flores da cameleira rebentaram
em notas musicais
o pitósporo odorizou a primavera inteira
o junípero a tília a magnólia e o
eucalipto "obliqua" marcaram uma
etapa de amor
uma chegada.
O farol da viagem era a casa
com seus olhos de lume e boca incendiada.
Maria Almira Medina