Serenata de Satã às estrelas
Nas noites triviais e desoladas,Como vos quero, místicas estrelas!...
Lúcidas, antigas camaradas...
Gotas de luz no frio ar nevadas,
Pudesse a minha boca inda bebê-las!
Não vos conheço já. Por onde eu ando!...
Sois vós místicos pregos duma cruz,
Que Cristo estais no Céu crucificando?
Quem triste pelo ar vos foi soltando
Profundos, soluçantes ais de luz!
Ó viagem nas nuvens desmanchadas!
Doces serões do Céu entre as estrelas!
Hoje só ais, ou lágrimas caladas...
Ai! sementes de luz mal semeadas,
Ave do Céu, pudesse eu ir comê-las!
Triste, triste loucura, ó flor's da cruz,
Quando vos eu dizia soluçando:
-Afastai-vos de mim cardos de luz!-
Pudesse eu ter agora os pés bem nus
Inda por entre vós i-los rasgando.
Hoje estou velho, e só, e corcovado;
Causa-me espanto a sombra duma estola;
Enche-me o peito um tédio desolado;
E corro o mundo todo, esfomeado,
Aos abutres do céu pedindo esmola.
Eu sou Satã o triste, o derrubado!
Mas vós estrelas sois o musgo velho
Das paredes do Céu desabitado,
E a poeira que se ergue ao ar calado,
Quando eu bato com o pé no Evangelho!
O Céu é cemitério trivial;
Vós sois o pó dos deuses sepultados;
Deuses, magros esboços do ideal!
Só com rasgar-se a folha de um missal,
Vós caís mortos, hirtos, gangrenados.
Eu sou expulso, roto, escarnecido;
Mas vós já ninguém vos quer as leis
Oh! velho Deus, oh! Cristo colorido!
Lembrai-vos que sois pó enegrecido
E cedo em negro pó vos tornareis.
Eça de Queirós, 29 de Agosto de 1869 - Pub. em Revolução de Setembro