Solidão
«Tem a solidão isto de comum com o silêncio e a escuridade: espanta e aturde quem nela cai; mas, logo que o ouvido, liberto dos sons fortes, aprende a conversar com a mudez; tanto que os olhos, desofuscados dos luzeiros intensos, se exercitam em caçar visões de raios, fosforescências indecisas, que são como que os cílios das trevas, abriu-se o negrume em brilhantismo, o silêncio avivou-se de diálogos, a solidão, que parecia o nada, é um mundo novo com um sistema completo de existências imprevistas e apropriadas. Que admira? A solidão medita, e a meditação cria. Os sentidos alimentam-se do que lhes oferecem a natureza, a fortuna, o acaso; a divindade interior, a alma, têm tratos inexplicáveis com o íntimo e desconhecido. Nos cálculos taciturnos de Galileu, firma-se o céu, volteiam os planetas; Fulton faz surgir a máquina a vapor, magia, poesia, potência escrava do homem, e dominadora, primeiro dos oceanos, depois dos continentes; a solidão cismadora mostra a Linen os amores e o sono das plantas, a Newton e a Laplace o código dos astros, ao Gama o caminho do oriente, ao Soldado Camões o da imortalidade. Arquimedes, a sós com a natureza e com o seu génio, descobre os meios de destruir e incendiar a frota romana. Absorto nas suas reflexões criadoras, no seu gabinete, como num antro, sem o sentir é degolado. Só de tão extraordinária concentração podiam brotar os seus tão extraordinários inventos e descobrimentos. Lavoisier, depois de haver legado ao mundo a mais opulenta herança científica, condenado ingratamente à guilhotina, pede aos seus carrascos quinze dias! Para quê? Para concluir trabalhos úteis à Humanidade. Depois já não terá pena de morrer.
O Homem que nasce pertencente à escassa família naturalista, pai da química, e daquele geómetra, pai da mecânica, mesmo com os olhos fechados, mesmo dormindo e sonhando, está servindo como operário; mas abaixo dele, há ainda, não menos veneráveis, os prestigiosos cismadores do mundo da arte, mundo não menor, nem talvez, em última análise, menos útil que o da ciência.
André Chenier, espécie de Lavoisier da poesia, convocado também para a morte, bate apaixonadamente raivoso na fronte, porque sente que se lhe estava ali dentro formando, como em cérebro olímpico, uma nova musa gentilíssima. Quem lha revelara? A meditação solitária, que sabe tudo e tudo profetiza.
Boníssima solidão! Tu és para a sociedade o que as tuas montanhas são para os vales: nas tuas entranhas se filtram, dos teus recôncavos rebentam os génios possantes e profundos que vão derramar por longe a fertilidade. Mas tu não és só mãe às torrentes caudais: uma fontinha entre lapas, desconhecido, não se goza menos do teu favor. Sobre o pouco libertas dons, como sobre o muito; prudente para o imenso, prudente para o limitado. Solidão, inspiradora de todos os visionários, de todos os descobridores, de todos os inventores! Solidão, ninho das rolas como das águas, perdoa, se eu não sabia ainda apreciar-te.
A chave do enigma.»
António Feliciano de Castilho
Fotografia de johny hemelsoen