Carta «Cultura e Futuro»

11:12 Filipe de Fiuza 0 Comments

O património cultural e o acesso à criação artística contemporânea constituem valores de civilização inerentes às democracias modernas. Os direitos à identidade e à diversidade cultural, à participação na vida cultural, à livre criação e fruição artísticas, à cooperação cultural internacional, são direitos culturais reconhecidos pela UNESCO, que investe os Estados na responsabilidade de construir políticas públicas que assegurem o seu pleno exercício. No Portugal democrático, a efetivação dos direitos culturais constitui uma tarefa fundamental do Estado, a par dos direitos económicos e sociais e da promoção do bem-estar, da qualidade de vida da população e da igualdade real entre portugueses, conforme estipulado na Constituição da República.

Portugal está hoje equipado de museus, bibliotecas, arquivos, teatros, cineteatros, orquestras, património histórico, material e imaterial, bem como de uma rede de artistas, criadores, programadores, técnicos e produtores, complexa e de reconhecida excelência nacional e internacional. No entanto, todo este edifício apresenta enormes fragilidades. Os investimentos em infraestruturas e em formação não foram acompanhados por uma estruturação mínima da partilha de encargos e responsabilidades, da definição de cartas estratégicas e de regras de gestão independentes dos poderes imediatos.

Neste momento, como resultado de uma governação abertamente hostil à ideia de serviços públicos de cultura e que usa a crise como alibi, assistimos a uma rápida e progressiva desprofissionalização no setor cultural, ao fechamento das agendas culturais e à desagregação da identidade social dos equipamentos públicos. O desinvestimento do Estado, nas diversas dimensões das políticas públicas para a cultura, nega, efetivamente, o acesso dos cidadãos à cultura e desbarata o investimento feito nesta área no Portugal democrático.

O acesso à cultura, na dupla dimensão da criação e fruição, é essencial ao desenvolvimento. O Estado não pode iludir as suas responsabilidades na promoção do acesso ao património cultural, ao conhecimento, à qualificação, à participação cidadã. E não pode também desresponsabilizar-se pelo acesso à criação artística, que constrói o património cultural do futuro e é o instrumento de construção das narrativas próprias, das identidades múltiplas da nossa vida coletiva. Um povo sem acesso ao património cultural e à criação artística é um povo colonizado, sem os instrumentos básicos para se conhecer e, portanto, formular a sua singularidade.

Ao contrário daquilo que enuncia o discurso corrente, é precisamente nos momentos de crise, como o que vivemos, que as políticas públicas para a Cultura ganham renovada atualidade. A Cultura é um instrumento fundamental de construção de uma qualquer ideia de futuro, quer do ponto de vista simbólico, enquanto conjunto de valores e práticas que têm como referência a identidade e a diversidade cultural dos povos e que compatibiliza modernização e desenvolvimento humano, quer do ponto de vista económico. A produção cultural dinamiza uma série de cadeias produtivas que lhe permitem multiplicar o investimento público como nenhum outro setor. E é ainda um elemento estratégico da economia do conhecimento.

O discurso económico, instituído e incentivado pela tutela, tem procurado submeter a cultura e a criação artística a conceitos redutores que tendem para uma hegemonização da oferta concentrada em grandes produtores e distribuidores de conteúdos. É sistematicamente esquecido que a economia do conhecimento, baseada na criatividade, é bem-sucedida apenas quando construída sobre uma forte e complexa rede de infraestruturas e agentes culturais que só políticas públicas podem garantir. O paradigma norte-europeu, tido por exemplo de sucesso, acontece graças a um adquirido fundamental e politicamente consensual de investimento público na cultura e na criação contemporânea, que permitiu às indústrias culturais e criativas uma aposta arriscada na inovação, com fracassos e sucessos.

Torna-se pois imperativo que a densa e complexa rede pública dos serviços de cultura se qualifique no imediato e se torne operativa, de modo a cumprir o espírito da Constituição onde o Estado Português se obriga, em colaboração com todos os agentes culturais, a incentivar e a assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como a corrigir as assimetrias existentes no País e a articular a política cultural e as demais políticas setoriais. É necessário um novo paradigma de gestão desta rede complexa de equipamentos e agentes culturais, cuja concretização exige responsabilidade governativa real e compromisso orçamental, onde a justiça da partilha e a ética da responsabilidade presidam às tomadas de decisão. O património cultural e a criação artística contemporânea constituem parte do melhor que existe na representação externa da imagem de Portugal. Urge viabilizar a internacionalização desta materialidade e deste imaginário, apoiar a produção contemporânea e, sobretudo, viabilizar aos cidadãos portugueses o usufruto do seu capital simbólico e cultural.

Os subscritores deste documento afirmam a necessidade de um compromisso alargado em torno de uma ideia estratégica de cultura e de relação com a criação artística, que agregue as forças políticas, mas, sobretudo, os cidadãos enquanto primeiros destinatários de toda a atividade artística e cultural.

Este compromisso não pode deixar de incluir uma dimensão orçamental – negligenciável no cumprimento das metas de redução do défice, dada a dimensão quase nula que assume no presente – que deverá passar pela inclusão de programas específicos para a cultura no plano de investimentos que resultará da reprogramação do QREN.

Deverá, no entanto, transcender essa dimensão orçamental, conferindo prioridade à articulação de responsabilidades entre o Estado central e as Autarquias, à enunciação de prioridades no restabelecimento de um tecido criativo com um mínimo de escala e de capacidade de desenvolvimento de projetos, à definição clara de regras de gestão independente da rede pública de serviços de cultura, ancoradas numa estabilidade que permita o desenvolvimento de planos de ação plurianuais e, finalmente, à normalização das relações do Estado com os agentes independentes.

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