Ruínas
I
E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.
Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!...
Ó ciência, minha amante, ó sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo...
Nunca o teu lábio conheceu piedade!
Mas caia embora o velho paraíso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.
II
Morreu-me a luz da crença — alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.
A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.
Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herói antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.
A implacável, a rígida ciência
Deixou-me unicamente a Providência,
Mas, deixando-me Deus, deixou-me tudo.
Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias'
Fotografia «Ruína na Praia das Maçãs» de Filipe de Fiúza